por Roberto Requião, em discurso no Senado
O
Partido dos Trabalhadores, o glorioso e inefável PT, reintroduz, em
grande estilo, aos usos e discursos políticos, um dos piores defeitos do
caráter pátrio: o emprego do eufemismo, essa figura de linguagem ou
recurso estilístico que serve tanto para encobrir o preconceito, racial
ou de classe, como para dissimular, para trapacear e ocultar com nuvens
róseas a verdade dos fatos.
Eufemismo
que transforma os negros em “morenos”, porque “negro”, para os nossos
burgueses bem postados e bacharéis de anel de rubi, é uma ideia pouco
agradável, já “moreno” suaviza a rejeição. Eufemismo que transforma os
trabalhadores, os pobres, os explorados em geral em “menos favorecidos
pela sorte”; as escravas domésticas em “secretárias”; os ladrões do
dinheiro público em “supostos” assaltantes do erário; os bicheiros e
contraventores em “empresários de jogos”;
os especuladores em “investidores”; a lavagem de dinheiro em “engenharia financeira”; os empregados miseravelmente assalariados dos supermercados em “colaboradores”. E patrões em “colegas de trabalho”, como os nossos jornalistas tratam os
os especuladores em “investidores”; a lavagem de dinheiro em “engenharia financeira”; os empregados miseravelmente assalariados dos supermercados em “colaboradores”. E patrões em “colegas de trabalho”, como os nossos jornalistas tratam os
Marinho, os Civita, os Mesquita, os Frias, segundo a observação demolidora de Mino Carta.
Pois
bem, eis que o já citado glorioso e inefável Partido dos Trabalhadores
oferece a sua prestimosa ajuda para a coleção de eufemismos que
disfarça, distorce, empana a crueza da realidade nacional. Segundo o
novíssimo dicionário petista da negação da história, dos fatos da vida e
dos compromissos programáticos, conceder não é privatizar. Concessão é
uma coisa, privatização outra, dizem.
De que a semântica não é capaz!
Por
seis vezes, não por uma, duas ou três, mas por seis vezes, apoiei e
trabalhei pelo candidato do PT à presidência da República. No Paraná,
nos meus dois últimos mandatos, governei em aliança com o PT. Nesta
Casa, sou da base do Governo Dilma.
Isso,
no entanto, não me impede, não me inibe ou me descredencia a deplorar
não apenas as desculpas piedosas ou a falta de originalidade nas
explicações e as tentativas de trapacear a verdade, não apenas isso, mas
sobretudo o fato em si; isto é, as privatizações. E elas são o que são:
privatizações, sem rebuço, sem disfarce, cruamente, verdadeiramente
privatizações.
E eu sou contra.
Há
uma anedota, que o decoro parlamentar impede-me de contar, sobre a
mecânica das concessões e das parcerias público-privadas. Quem participa
com o que.
Caso
eu tivesse alguma dúvida, ela se dissolveria lendo as entusiasmadas, e
até poéticas, ao seu estilo, declarações do senhor Eike Batista,
saudando as concessões anunciadas pelo presidente Dilma. O senhor
Batista, bilionária criação de outras concessões petistas, parecia
surfando nas nuvens, de tão deleitado.
O
discurso é o mesmo de sempre. A velha história da falta de recursos
para tocar as obras de infra-estrutura; a diminuição do tamanho do
Estado; a eficiência da iniciativa privada; o combate ao desperdício e à
corrupção e lorotas da espécie.
Houve
um momento, lá no passado, que imaginei que o PT aprendera as lições
das concessões-privatizações empreendidas pelos tucanos. Por exemplos, a
concessão das ferrovias a ALL et alia, hoje um caso de polícia segundo o
TCU e o Ministério Público; a concessão de rodovias, com a imposição de
tarifas de pedágio abusivas, transformando as concessionárias em sócios
indesejados dos agricultores, dos industriais e dos caminhoneiros; a
concessão, em várias partes do país, dos serviços de energia elétrica e
de saneamento, com a acentuada piora desses serviços ao mesmo da
elevação vertiginosa das tarifas.
Lá
no Paraná, parte da empresa pública de saneamento, a Sanepar, foi
privatizada. Embora minoritário, o sócio privado assumiu a gestão da
empresa que, com todas as letras, sem qualquer pejo ou escrúpulo,
decretou que a prioridade da Sanepar passava a ser o lucro dos
acionistas. E tome aumenta de tarifas. Quando assumi o governo, em 2003,
congelei as tarifas de saneamento e as mantive congeladas por oito
anos, sem prejuízo para a saúde financeira da empresa, o que dá uma
idéia do quanto eles inflaram o preço da água e do esgoto para remunerar
o sócio privado.
No
capítulo das concessões e privatizações brasileiras temos ainda dois
ingredientes típicos dos negócios público-privados: o financiamento das
privatizações e os contratos de concessão.
Como
se sabe, o Estado privatiza porque não tem dinheiro para tocar obras de
infra-estrutura ou comandar os setores de energia, saneamento e
comunicações. Mas como os candidatos às concessões e privatizações
também não tem dinheiro para arrematar as ditas nos leilões, não há
problema: o Estado empresta o dinheiro para que a iniciativa privada
compre aquilo que Estado não tem dinheiro para tocar.
Não
é piada, não estou aqui usando a navalha de Occam para reduzir ou
simplificar as coisas. É assim mesmo que funciona, porque como ensinava o
bom frade já lá no distante século 14, a explicação mais simples
geralmente é a correta.
O
BNDES e os fundos de pensão da Petrobras, do Banco do Brasil e da Caixa
também não me deixam na mão e assinam minhas afirmações com os tantos
bilhões de reais “investidos” nas concessões e privatizações.
Modelozinho interessante, não acham, senhoras e senhores senadores?
Outro
ingrediente distintivo, característico desse modelo são os contratos de
concessão. Os concessionários de ferrovias e rodovias, para citar,
assumem compromissos de extensão e duplicação das estradas, construção
de viadutos, túneis, elevados, passarelas. Mas fazem o mínimo possível.
Só arrecadam e não há quem os puna pelo contrato não cumprido. A
intangibilidade das concessionárias é uma cláusula não escrita dos
contratos, mas nem por isso deixa de ser obedecida com fervor pelas
agências reguladoras.
O
caos na telefonia celular só recebeu a atenção da Anatel porque os
abusos foram muito além daquele “índice de abuso” que a agência julga
tolerável.
Senhoras e senhores senadores.
Na
virada da década de 80, e desta para os anos 90, vimos o ascenso, que
parecia inelutável, do neoliberalismo. Tal qual na porta do inferno de
Dante,também gravara-se gravara nos caminhos dos povos: “Abandone toda a
esperança aquele que aqui entrar”.
Assim,
vimos, com tristeza e dor, as velhas correntes social-democratas e
socialistas moderadas na Europa, na Ásia, nas Américas cederem,
capitularem diante da arremetida dos novos bárbaros. Mas não no Brasil.
Aqui, o PT parecia resistir à galopada dos godos e visigodos.
Por
isso tudo, houve um momento que imaginei que o PT seria firme,
intransigente, no repúdio às concessões e privatizações, especialmente
as concessões e privatizações à moda tucana.
Enganei-me.
Quando reptados pela oposição, especialmente pela aguerrida bancada do PSDB, o PT reparte-se em dois.
Há aqueles que batem no peito e ufanam-se: Evoluímos! Avançamos! E comemoram o retrocesso com o fervor dos apóstatas.
Há
aqueles que se refugiam na semântica e, de forma até mesmo divertida,
cômica esforçam-se para provar que o lobo é uma inocente e cândida
ovelha.
Assim,
sem oposição, já que toda a mídia atua no coro nas privatizações, e a
elas não se opõem sequer partidos ditos de esquerda ou progressistas
como o PCdoB, o PSB e o PDT, sem oposição, o Governo reedita um dos
cânones da desgastada e desmoralizada cartilha neoliberal.
Mas
a “evolução”, o “avanço” do PT e de nosso Governo Federal não para por
aí. Animem-se privatistas, anime-se mercado, regozijem-se
transnacionais, que vem mais.
Uma
idéia que não é de hoje, progride, sem muito alarde nesta casa: a
privatização da Embrapa. De novo o eufemismo. Dizem que não é
privatização, que é abertura de capital. De novo a alegação de sempre: a
Embrapa não tem recursos, vamos captar os recursos no mercado, abrindo o
capital da empresa.
Não
é preciso mais que dois neurônios para saber que “mercado” é esse que
vai se apropriar de boa parte da empresa. Esse “mercado” chama-se
Monsanto, Syngenta, Bayer, Cargill, Dow Agro, Ciba-Geigy, Sandoz, as
gigantes transnacionais do setor que monopolizam a pesquisa e a produção
de sementes, defensivos agrícolas, biogenética e atividades do gênero.
Pergunta
a agrônoma e especialista em biodiversidade Ângela Cordeiro: “
“Considerando a importância da inovação e pesquisa na agricultura para
um Brasil sustentável, sem fome e sem miséria, o que esperar de uma
empresa de pesquisa cuja agenda venha a ser orientada pelos desejos da
Monsanto, Syngenta, Bayer?
Segundo
ela, se, hoje, já é difícil incluir na pauta de pesquisa da Embrapa
temas como a agricultura familiar e agroecologia, imagina o que vai ser
com tais sócios. Para ela, a abertura do capital da Embrapa e o
inevitável redirecionamento de suas pesquisas caminham na contramão do
programa do Governo Dilma, que diz priorizar a segurança alimentar e o
combate à fome no país.
Com
toda certeza, aduz-se, a Monsanto e quetais não estão propriamente
interessadas no dístico “país rico é país sem pobreza”, sem fome, sem
deserdados da terra e sem terras.
A
agrônoma Ângela Cordeiro alerta para outro risco da abertura de capital
da Embrapa, enfim, de sua privatização: a apropriação privada de
recursos genéticos depositados no fabuloso, riquíssimo Centro Nacional
de Pesquisas Genéticas e Biotecnologia, o CENARGEM.
O
acervo do CENARGEM e os bancos dos demais centros de pesquisas da vão
se tornar propriedade dos acionistas privados? Tudo o que acumulamos em
dezenas de anos de pesquisas, com investimentos públicos, com o suado
dinheiro de cada brasileiro, tudo isso vai ser entregue de mão beijada
para a Monsanto et caterva?
Ou
alguém é ingênuo ao ponto de achar que as sete irmãs que dominam a
produção de sementes e dos chamados, eufemisticamente, “defensivos
agrícolas” vão associar-se à Embrapa sem a intenção de botar a mão
grande em uma dos mais fantásticos acervos de pesquisas agropecuárias e
florestais do planeta Terra?
O
jornalista Leonardo Sakamoto, reproduziu esses dias em seu blog, o
“Blog do Sakamoto”, o alerta de um outro jornalista, Xavier Bartaburu,
sobre o desaparecimento do mapa do mundo, a extinção mesmo, de cerca de
800 alimentos, dezenas deles no Brasil.
Não
são apenas animais e florestas que correm riscos. Os alimentos também.
Alimentos tradicionais, que fazem parte da história, da vida, da cultura
de povos e que garantem a subsistência de centenas de milhões de
pessoas correm o risco da extinção.
Mesmo
que aos trancos e barrancos, e graças à teimosia de alguns
pesquisadores, a Embrapa tem ajudado a preservar os alimentos
tradicionais. Essa resistência, é líquido e certo, cessará com a
privatização da empresa. Afinal que interesse a Monsanto, a Syngenta, a
Bayer teriam no umbu, nas frutas do cerrado, no baru, no berbigão, nas
quebradeiras do babaçu do Maranhão, nos índios produtores do guaraná
nativo, no caranguejo aratu dos manguezais do Sergipe, só para citar
alimentos brasileiros na lista de risco, listados pelo jornalista?
Certamente
o mesmo interesse que o mercado tem pelo destino da ararinha-azul.
Afinal, o que o mercado quer é a transformação do planeta em uma imensa
plantation, com soja, milho, algodão, de preferência tudo transgênico.
Privatizar
a Embrapa –ou como tentam amenizar os pregoeiros, “abrir o capital da
empresa”– sob a alegação de falta de recursos para pesquisas é mais um
desses manjados argumentos de que abusam os liberais todas às vezes que
cobiçam um naco de uma empresa pública.
De
todo modo, faço fé na resistência da diretoria da Empraba e de seus
pesquisadores e funcionários. É uma trincheira em que vale a pena
combater.
Senhoras e senhores senadores, assim caminha o Brasil; ou melhor, assim retrocede o Brasil.
O
economista Paul Krugman, analisando a proposta de cortes de gastos e de
responsabilidade fiscal oferecida aos Estados Unidos por Paul Ryan,
candidato a vice-presidente na chapa de Mitt Romney, conclui: “Parece
piada, mas desgraçadamente, não é piada”.
Plagio
o Nobel da Economia ao ver esse hilariante debate entre petista e
tucanos sobre concessões e privatizações: “Parece piada, mas
desgraçadamente, não é piada”.
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